segunda-feira, 11 de outubro de 2010

AC/DC

(o relato de um afro-caucasiano-brasileiro na produção da capacitação de professores pelo projeto A Cor da Cultura)

Parte 1 – AC (antes da Cor da Cultura)
Meu nome é Tadeu Lima, sou produtor audiovisual, tenho 28 anos, sou branco, de olhos claros, cabelo castanho cacheado e sardas no ombro.

Sempre me disse branco. De fato não sei se houveram negros na minha familia, a nossa memória se perdeu. Certamente, algum de meus antepassados é negro. Como diz a marchinha de carnaval “o seu cabelo não nega...”. Mas o fato é que dos meus avós para trás, pouco ou nada se sabe. O que sei é que a família da minha mãe era do interior do Espírito Santo, da periferia rural de uma cidade chamada São José dos Calçados. A família do meu pai veio de Olinda-Pernambuco para o Rio de Janeiro, em busca de uma vida melhor. Típicos brasileiros.

Cresci entre negros e brancos, meu pai bebia uma cervejinha com os amigos de trabalho no fim de semana. Pra mim importava mais o fato de que estavam sempre falando alto... bebados na maioria das vezes.
Minha tia tem uma vizinha negra que é madrinha de seus filhos.
Volta e meia eu era “rezado” para curar o “quebranto” por uma negra gorda que muitos chamavam de “macumbeira”, mas que eu sempre encontrava nas missas.
“Comadre” e “Comprade”, era como todos nós chamávamos os pais de uma família que vivia numa grande casa num bairro arrumadinho da baixada fluminense: a Venda Velha. Perto do shopping, a promessa da linha dois do metrô até a Pavuna fazia da casa deste casal, em São João de Meriti, uma área nobre de se morar.
Isso é pra dizer do ambiente onde cresci. Brancos e negros iguais, com negros em situação econômica até melhor que a nossa. Ou seja: pra mim, negro nunca foi sinônimo de “menos”.

Fui criado na Igreja Católica, cresci na fumaça deixada pela Teologia da Libertação. Os reacionários do Vaticano já ampliavam seu controle, mas ainda havia muita comunidade de base espalhada pela Baixada Fluminense. Na paróquia da qual fazia parte, a catequista era uma senhora negra, orgulhosa de sua cor, mas com lindos cabelos alisados; nas missas, atabaques e pandeiros faziam parte dos instrumentos e vez ou outra aparecia um grupo fazendo uma tal de missa dos quilombos, ou missa afro-brasileira como ficou conhecido o movimento depois.

Estudei em escolas particulares durante todo o ensino fundamental e numa grande escola estadual durante o ensino médio. Numa época em que a Lei 10.639/03 ainda não existia. Pouco, ou quase nada, me foi dito sobre a África ao longo destes anos. Mesmo assim, sempre soube que o Egito é parte da cultura e história da África (apesar de boa parte da memória disso estar guardada em museus da Europa), sei o nome de uns 10 dos 54 países sem exigir muito da memória e que é o segundo continente mais populoso do planeta, sei ainda que dos 30 países mais pobres do mundo, pelo menos 20 estão na África...

Sempre achei a política de cotas para negros uma ação compensatória justa, é visível que os negros ainda são minoria na universidade.

Nunca julguei ninguém pela cor da sua pele. Nunca achei que eu era melhor que outra pessoa por causa do tom da minha pele. Nunca atravessei a rua no meio da madrugada imaginando que o negro na mesma calçada seria um bandido (e já fui assaltado várias vezes, por brancos e negros, por não mudar de calçada).

Enfim, cresci e formei minha personalidade num ambiente favorável às relações inter-raciais em igualdade de condições e direitos. Talvez por isso tudo tenha sido tão intenso estar na produção do projeto A Cor da Cultura. Eu, que nunca havia negado o racismo, passei a entender que mais que reconhecer que ele existe, é preciso superá-lo.


Parte 2 - DC (depois da Cor)
Fui chamado para fazer a produção das capacitações do projeto A Cor da Cultura, um projeto da Fundação Roberto Marinho que capacitou professores em vários estados brasileiros para uso de material pedagógico criado pelo Canal Futura visando aplicar a Lei 10.639/03, que institui a inclusão do ensino de História da África e História e Cultura Afrobrasileira no currículo do ensino fundamental e médio.

Num primeiro momento o que me chamou atenção foi o fato de viajar o Brasil pelo Projeto. Ir a Manaus, mesmo a trabalho, seria (e foi) uma experiência muito interessante, uma oportunidade de conhecer melhor o Brasil.
O projeto me levou a Manaus, Curitiba, Cuiabá, Londrina e Juazeiro do Norte.

Eu, branco, num projeto onde a maioria é negra, tratando um “assunto de negros”, causou estranheza. Por um instante de tempo bem curto, o olhar de alguns poucos foi de dúvida se eu realmente deveria estar ali, representando a instituição, falando em nome da produção do Canal Futura. Como se o fato de eu ser branco e de olhos azuis me tornasse menos apto para o trabalho no projeto, como se a escolha do canal em me colocar na produção do projeto estivesse equivocada. Afinal, não tenho a pele negra.
Esse jeito de olhar, esse pré-julgamento, me incomodou, mas durou por um tempo curto. Em alguns minutos meu jeito de trabalhar, meu lado divertido, cativara o grupo e eu já não era um “branco estranho”. Havia me tornado um pálido companheiro. E assim foi pelos últimos 45 dias.

Mas confesso que foi estranho sentir isso. Essa rejeição inicial, sem motivos, sem razão. Eu senti algo parecido com o que sentem os negros ao longo da vida. Senti o que muitos deles sentiram várias vezes ao serem impedidos de entrar numa agencia bancária pela porta “automática”; algo parecido com o que sentem os jovens negros numa entrevista de emprego quando sabem que perderão a vaga para o branco-de-olhos-azuis-sem-experiencia. Eu senti aquilo, por uma fração de segundos. E foi muito ruim.

Não estou querendo aqui dizer que sei com propriedade o que é crescer vendo os ídolos da tv nunca terem a sua cor. Não posso também dizer que foram inúmeras as vezes em que a porta do banco travou. Os táxis poucas vezes não pararam pra mim no meio da madrugada. Só me lembro de uma única abordagem onde o policial tenha sido menos gentil. Nunca percebi que alguém tenha mudado de calçada para me evitar. Poucas as vezes vaguei a procura de emprego. Conto nos dedos as vezes em que fui confundido com um vendedor de loja...
Não me entenda mal, amigo leitor, mas talvez estas observações possam parecer pequenas, preciso confessar que sempre me pareceram pequenas, afinal, eu nunca havia sentido o preconeito na pele. Nem por ser pobre, nem por ser gay. Mas, aquele olhar do primeiro encontro com a equipe. Aquela fração de segundos em que nada é dito e tudo é julgado, pela cor da pele... faz toda a diferença, e incomoda.

A mudança provocada pelo projeto A Cor da Cultura é uma espécie de conversão. Provocou mudanças intensas, reavivou utopias militantes, foi um divisor de águas. Acredito que não vou militar no movimento negro, existem outras questões que tocam diretamente no meu calo, e vou cuidar delas prioritariamente. Questões de gênero, o combate as DST’s, a violência e extermínio da população jovem, a vida política partidária, as reflexões sobre fé e cidadania, a ecologia... E nisso tudo, a militância negra é transversal.

Não dá pra continuar fazendo parte de uma sociedade que discrimina as pessoas em função da cor da pele, não dá pra continuar reproduzindo conceitos equivocados a respeito da presença negra no Brasil, não dá pra continuar marginalizando e ignorando a história e importância da população negra na identidade do povo brasileiro, não dá pra achar que temos o direito de não nos opormos às injustiças.
As pessoas do mesmo sexo tem direito de casar; as embalagens dos nossos produtos podem agredir menos o meio ambiente; podemos gastar menos papel, derrubar menos arvores; é preciso falar de sexo nas escolas, distribuir camisinhas entre os adolescentes; mulheres pobres podem parar de morrer em clinicas ilegais de aborto, a lei precisa garantir a dignidade das decisões sobre o próprio corpo; é preciso envolver-se na vida política do pais para que outros Tiriricas não sejam eleitos. E nisso tudo, a militância branca e negra é fundamental.

A Cor da Cultura me fez pensar em muita coisa. Cargas emocionais grandes, que me colocaram diante de situações novas, num momento em que muita coisa nova ta acontecendo na minha vida pessoal.
Ainda não sei qual é o próximo passo, mas sei que parado não dá pra ficar.

Um comentário:

  1. Imagino que o tamanho dos seus sentimentos é o mesmo da sua prolixia rsrs
    Parabéns. Um relato do carlho.

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