terça-feira, 3 de agosto de 2010

Um certo desjejum salgado

O braço já dormente acorda o homem incomodado, que com dores no corpo por passar a noite encaixado numa estreita cama, se arrasta por debaixo de outro corpo, o mesmo corpo protagonista de seus sonhos mais recentes. Franzino e frágil, o tal corpo se enrosca com muita delicadeza àqueles braços cansados e frouxos de sono, a ponto de ser complicados demais aquela separação e o despertar para as coisas do dia. E assim, metade com sono, metade desperto, o homem vai ao encontro dos mesmos cachos, cheiro e pele com os quais cortou a noite.

- Acorda.

Sussurra o sujeito entre pequenos beijos ao redor daquela orelha de pontas avermelhadas. Uma pequeníssima e rala pelugem recobria a face de sua menina, dando-lhe um aspecto macio e aconchegante. E tal qual a orelha, nariz e lábios também eram bem rosados. Olhava com carinho aqueles lábios, nariz e orelha, tão rosadinhos, mas que ora se faziam avermelhados, ora laranjas... Tudo dependia daquela diária e pontual luz quase amarela que se espalhava pelo quarto. Mas por mais que a preguiça e as gostosuras da cama lhe prendessem ao sono, seu sonho já tinha se dissipado e não tinha mais como retornar a ele, ao menos não por hoje. Era hora de levantar, ou melhor, de despertar, e tinha a missão cruel de dar fim àquela noite. Um novo dia se levantava e todos nós estávamos convocados. Mas como acordar aquele outro ser, se nem ele estava certo de sua sobriedade?

- Acorda.

Sussurra o sujeito entre pequenos beijos ao redor daquela orelha de pontas avermelhadas. Mas estranhamente a moça rola sobre a cama e abraça o travesseiro, se fortificando beata por detrás do lençol repuxado. Seus quadris, para surpresa do homem, se fixam distantes e alheios a sua presença. Ossos, carne e pele, por ora nada lembram os lascivos convites, que quase naufragaram na noite anterior aquele sujeito de poucas mãos. Coincidência ou não, um vento rasteiro entra pela fresta inferior da porta. O lençol é fino. O quarto azula-se. Faz frio. A briga pela coberta e pelo lugar à cama perde o tom recreativo de horas atrás, parece que as coisas se tornaram sérias demais. Já se levantaram as trincheiras, o que falta para o conflito? As primeiras sansões já foram impostas, e em seu mundo onírico o homem não mais sentia aquele cheiro de pele feminina. O cheiro que lhe impregnava tinha sal e água e parecia mesmo que tinha tirado o dia para lhe afogar. De olhos fechados, o pobre sujeito tenta voltar ao sono. Quem sabe aquela manhã não passou de uma má continuação de seus sonhos, ou um olhar sonolento sob a luz errada?
Mas o sono não vem. E o pensamento não sabe driblar as perguntas lançadas por aquele corpo rijo, branco, frio e reservado, ali bem colado ao seu. Entediado pelo sol, há horas invasor do quarto, desiste de acompanhar o sono daquela mulher, de quadris rijos e emburrados.
Vou sair. Pensou o sujeito se desvencilhando de sua compartilhada nudez. E frente às obviedades, não tinha mais o que se perguntar, apenas voltar ao cotidiano.
Levanta da cama, escova os dentes, se veste, se calça e sai. Elevador, portaria, bom dia, faixa de pedestres e mais passos vesgos.
Mudo e com calafrios, estala sentado os dedos dos pés, e surpreso só então percebe seu paradeiro: de frente a um poluído mar urbanizado, mergulhado em gelados versos.

2 comentários:

  1. Fez-me lembrar de algumas manhãs, nem tão cinzas, nem tão encantadoras... onde o sol questiona a vida.
    Bom dia, Arlindo!!!

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